House of Cards: Um estudo sobre a (real) natureza do ser humano.
março 22, 2014 em 42, Artigos e Notícias, Cinema e TV, Opinião, Séries, Sociedade por Pedro Luiz
Confesso que venho perdendo a fé sobre a minha própria cinefilia. A cada sexta-feira de lançamentos (agora quinta, já nem sei…), me deparo com três refilmagens, dois reboots e, com sorte, um filme que me faz sair de casa. Por essas e outras, tenho me aproximado cada vez mais dos seriados. É cômodo, rápido e mais barato – um pacote simples de uma TV por assinatura + sistema de streaming saem bem mais em conta do que quatro finais de semana na companhia dos inesgotáveis filmes 3D.
Com esse pensamento senil, percorri alguns gêneros e contabilizei mais de trinta e sete temporadas nos últimos cinco meses. No caderninho estão algumas boas recomendações, alguns péssimos exemplos de desperdício de talento e outras poucas produções que eu pagaria novamente para assistir. É motivado por uma dessas últimas que decidi escrever este texto.
A House of Cards, aí vão os meus – singelos – aplausos.
Sou um aspirante ao título de ‘’humanista’’. Estudo e consumo as ciências humanas com muito entusiasmo. Com isso em mente, posso dizer que no momento em que li a sinopse da série produzida e ‘’distribuída’’ pelo sistema Netflix, me senti instigado. Vi nomes como David Fincher, Michael Dobbs e Kevin Spacey envolvidos. A expectativa aumentou. Assisti ao piloto. Os créditos subiram e eu tive a certeza de que eu embarcaria novamente no mesmo frenesi de séries como Breaking Bad ou Sopranos.
A trama central de House of Cards gira em torno do congressista Francis Underwood (Spacey), líder da maioria democrata e um dos grandes responsáveis pela ‘’batalha’’ de votos na câmara. Se você conhece um pouco de política, sabe que para que um projeto ou uma lei sejam aprovados, é necessário que os deputados votem. E Frank Underwood é o engravatado que fará (convencerá a todos, custe o que custar) com que os projetos de seu partido sejam todos aprovados. Ou que seus próprios objetivos sejam alcançados. E de dez casos, nove envolvem seus próprios interesses.
O dia-a-dia dos deputados, congressistas e chefes de gabinete retratados ali, numa Washington atual, podem muito bem representar uma Brasília em meio a crises econômicas e acusações de fraude. O ser humano é absolutamente igual, em qualquer parte do globo. E a série consegue – de maneira magistral – mostrar a pequinês de uma pessoa normal, um civil, diante de um sistema coberto de ‘’sujeira’’. Alguém com dinheiro não é alguém necessariamente poderoso. O dinheiro é uma espécie de consequência. As inter-relações e a lealdade de pessoas influentes representam o verdadeiro poder. A humanidade é falha e corruptível (um pouco de História e essa conclusão é acessível. Um pouco de psicologia também, talvez). Em House of Cards, e em qualquer forma de governo que tenha mais de um ser humano, a fortuna é contada pela quantidade de favores a usar e não pela quantidade de dinheiro acumulada. Dever um favor a alguém pode significar o fim da carreira de um, ou a ascensão profissional de outro.
O personagem de Kevin Spacey tem a necessidade de controlar tudo e todos. Um vício em ter pessoas nas mãos, de poder arquitetar algo quando algum congressista ou superior consegue, por um momento, uma vitória dentro da sua própria rede. Em uma cena simples, mas de papel chave na construção do personagem, Frank fala especificamente com o relógio da parede de sua sala, lamentando-se de não poder controlá-lo. Não por acaso, o relógio tem um papel importante na trama, assim como em qualquer outro material artístico que trate de relações humanas.
Na série, não há espaço para neutralidade no julgamento. Tudo é particularmente errado e cabe ao espectador aceitar e seguir. Até para se fazer o que é comumente conhecido por ‘’certo’’, é necessário fazer primeiro o ‘’errado’’. E aqui, a mentira é um pecado leve, não conta.
Em uma determinada cena, Francis está na igreja e utiliza um dos seus momentos de conversa direta com o espectador – esse é um ponto crucial da série – e solta a seguinte frase: ‘’Não há conforto acima ou abaixo de nós. Somente nós. Pequenos, solitários, lutando, brigando uns com os outros. Eu rezo para mim mesmo e por mim mesmo. ’’
É absolutamente contraditório ouvir esse tipo de colocação de alguém que foi eleito, a princípio, para cuidar do interesse comum. Uma vez no poder, o ‘’todo’’ transforma-se em ‘’si próprio’’, e as necessidades dos outros passam a não mais existir. Esqueça o escrúpulo.
E sabe o que é pior? Saber que não há lado certo. Saber que somos exatamente aquilo. Saber que colocamos o ‘’eu’’ na frente. Na série, absolutamente todos os personagens do que podemos chamar de ‘’núcleo’’ são ambíguos e condenáveis, cada um por razões próprias. Todos estão completamente submersos em um mar de corrupção, onde a máxima é a ausência de qualquer valor moral.
O visual inicial, encabeçado inclusive por David Fincher nos dois primeiros episódios, traz uma fotografia de tom envelhecido à série. Demorei alguns minutos para perceber que não se tratava de uma série de época. O que me leva a seguinte interpretação: o conceito da série sobre pessoas inescrupulosas no poder e sobre a sujeira que boa parte da população de um país não sabe que acontece por baixo de seus (suados e lutados) votos, é colocado, através da estética, como algo atemporal. Como se essa fosse a real natureza do ser humano, independente da época. E, convenhamos, de fato, é.
Deixamos de lado qualquer valor (sendo isso algo completamente abstrato, mas ainda sim importante para a manutenção de uma sociedade) para conseguir mais um avanço. Usamos pessoas como peças. Um tabuleiro de xadrez repleto de rabos presos, dinheiro sujo e famílias destruídas.
House of Cards é um estudo bastante fidedigno de qualquer sociedade que utiliza a democracia como forma de guiar um país. Como diria Frank Underwood:
- ‘’Democracy is so overrated. ’’
PS: Existe uma versão britânica de House of Cards, lançada em 1990, com o saudoso Ian Richardson no papel principal. Essa versão foi produzida pela BBC e é de extrema qualidade, tanto na construção narrativa quanto nas atuações. A pegada é mais satírica – como só os britânicos sabem fazer – resultando numa série também de reflexão, mas de muitas gargallhadas.
PS2: Ainda pretendo discutir todas as nuances técnicas de House of Cards, além, claro, do elenco absurdo. Kevin Spacey rende um texto à parte.
Pedro Luiz
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Tudo bem Pedro Luiz.
“Participe do CoffeeUnlocked – Destrave o seu café!” foi de onde se originou?Haja vista se tratar do 1º post catalogado.E largando disso como assunto principal,o cinema no geral cada vez vem gastando mais em efeitos especiais e visuais,3D e o diabo a quatro;o recém-finado José Wilker falara que preferia Direção de Arte à categoria de Efeitos Especiais,possivelmente pela reação sensorial tender a ser mais efêra ou tipo isso.
Com essa expressão,Kevin Space me lembra aquela cara de “Tenho um segredo… ^^”;influência de ser um dos “Suspeitos{entendedores entenderão}” e na condição de congressista americano{Como eles enchem a boca para expelir esse termo} e lobista com as artimanhas possíveis e a variável posse da coleira,isto é,eles tem mais do que o rabo preso e aprofundando na comparação: Não é tão simples conduzir tantos e ao mesmo tempo no que seria o passeio da existência[ex: http://www.pop.com.br/arquivos/t/tra/trash200511/249039_cachorroINTjpg.jpg .
O tom envelhecido pode ser concernente também ao “A base da política como governo ou como relações humanas é inescrupulosa/hipócrita/ambígua dessa forma” ou estaria eu com a mesma linha de pensamento de ‘’Democracy is so overrated.’’,isto é,superestimando(overrated) as conjecturas(reticências) #Sorriso Malicioso[http://3.bp.blogspot.com/-4k9SF4pdNnM/Tr16k-RYDDI/AAAAAAAAAn4/w_VDhPZopAI/s1600/1.bmp
Tchau.
Ótima série, só peca no protagonismo exagerado e apenas nisso. Óbvio que não chega a ser um Seiya da vida, os desfechos forçados de conflito são bem poucos até, se comparados com os tantos guiados pela maquinação de Frank ou pela sorte do mesmo, mas uma vez ou outra fica óbvio o enfraquecimento do adversário convenientemente aparecendo no último minuto para que a vitória de Frank se concretize. Uma pena, pois acho que a questão da mancha na reputação seria um complicador excelente para a trama, e tudo indica que ela virá (tardiamente, mas bem vinda) na segunda temporada.